quarta-feira, 19 de agosto de 2009

FÁBULA

Era um homem, um homem comum, que um comum destino parecia controlar inteiramente. Um animal doméstico bem treinado.
Um dia sentiu um incômodo nos dois ombros, distenção muscular, má posição no trabalho... Foi piorando e resolveu olhar-se no espelho, de lado, inteiro e nu, depois do banho: não havia dúvida, duas saliências oblíquas apareciam em sua pele abaixo dos ombros. Teve medo mas decediu não comentar com ninguém, e como não transava frequentemente com a mulher, conseguiu esconder tudo quase um mês.
Fez como via fazer sua mulher: pegou de cima da pia um espelho redondo no qual ela ajeitava o cabelo e passou a analisar todo dia aquele fenômeno que em vez de o assustar agora o intrigava. Curioso mas sem sofrer - pois não doía -, foi observando aquilo crescer.
E pensava:
Nem adianta ir ao médico, porque se for um tumor (ou dois) tão grande, não tem mais remédio, é melhor morrer inteiro do que cortado.
Certa vez, quando se masturbava no banheiro, na hora do prazer sentiu que elas enfim se lançavam de suas costas e viu-se enfeitado com elas, desdobradas como as asas de um cisne que apenas tivesse dormido e, acordando, se espojasse sobre as águas.
Ficou ali, nu diante do espelho, estarrecido.
Agora ele não era apenas um homem comum com contas a pagar, emprego a cumprir, família a sustentar, filhos a levar para o parque, horários a cumprir: era um homem com um encantamento.
Eram umas asas muito práticas aquelas, porque desde que usasse camisa um pouco larga acomodavam-se maravilhosamente embaixo das roupas. Em certas noites, quando todos dormiam, ele saía para o terraço, tirava a roupa e varava os ares.
Sua mulher notou alguma coisa diferente no corpo de seu marido. Estava ficando curvado, tantas horas na mesa de trabalho. Nada mais que isso. Embora a mãe lhe tivesse dito que "com homem é sempre melhor confiar desconfiando", daquele seu homem pacato ela jamais imaginaria nada muito singular.
- Você vai acabar corcunda desse jeito, aprume-se - ela dizia no seu tom de desaprovação conjugal.
As coisas se complicaram quando, já habituado a sua nova condição, o homem anjo olhou em torno e, sendo ainda apenas um homem com asas, sentiu-se muito só, e começou a pensar nisso. E olhou em torno e se apaixonou.
Na primeira noite com sua amante, esqueceu o problema, tirou a roupa toda, e quando ela começava a apalpar-lhe as costas o par de asas se abriu, arqueou-se abrindo as pontas bem no alto por cima dele, na hora do supremo prazer.
Mas essa mulher/amante não se assustou, não se afastou. Apertou-se mais a ele, e dizia: vem comigo, vem comigo, vem comigo...
E abriu suas asas também.

Moral da história: os iguais se reconhecem mesmo inconscientemente.

3 comentários:

eroticromanticvaniamara disse...

Esdras que é o autor deste texto, please..Amei!

Anônimo disse...

Genial, no mínimo!
E inspirador também...
Parabéns e obrigado pela publicação

Abraços

- Leandro Merlllin

Raiana Reis disse...

Gostei da fábula, embora meus pensamentos românticos tenham encontrado uma beleza extra se a mulher de asas descobertas fosse inesperadamente aquela que já estava ao seu lado... rs

Parabéns, gostei mesmo... se aceitar como dica, faz uma revisão no texto para pequenas correções.
Abraços.

www.tocou.blogspot.com