sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

PEQUENO MONSTRO - PARTE FINAL

Última parte da crônica de Caio Fernando Abreu:





- Tu não quer convidar o Alex pra dar uma volta na praça e tomar um choppe no centro?
- Ficaram os três me olhando. Passei o dedo na calda do pêssego, e lambi bem devagar quando olhei pro primo Alex e convidei:
-Vamos?
Ele susteneou o olhar e disse que sim.


Azul, mas não era bem bem azul. Isso eu só vi na metade da primeira cerveja. Azul-escuro que clareava aos poucos, meio esbranquiçada nas partes em que encostava no corpo. Nos joelhos, na bunda, na frente onde roçava no volume do pau, atrás do fecho. Tinha fecho ecler que nem saia de mulher, em vez de botão igula a minha. Já tinha visto umas assim, mas em filmes de mocinho, e só umas poucas nuns caras meio metidos ali na praia mesmo. Dava um jeito especial na pessoa. Um jeito bonito, um jeito moderno. Eu não tinha falado quase nada, mas depois daquele gole de cerveja, tomei coragem e disse:
- Bacana a tua calça.
- É Lee - ele disse - Americana, importada.
- Onde a gente compra?
- Só de contrabando. Quer que te consiga uma?
Perguntei se era difícil. Ele disse que tinha jeito, conhecia um faixa em Porto Alegre. Depois falou que novinha não era tão legal, mas a gente podia desbotar com água sanitária no tanque. Melhor desbotar sozinha mesmo, só que levava tempo. Perguntei se a dele era desbotada de água sanitária ou de tempo. Ele estava distraído, não ouviu. Tirou o maço de Minister do bolso, perguntou se eu queria um. Falei que não, se o pai soubesse. Ele acendeu, jogou a fumaça pra cima, erguendo um pouco a cabeça. De novo, eu pensei no leão de ouro. Acho que eu estava ficando meio borracho com aquela cervaja toda, porque de repente fiquei de novo olhando sem conseguir parar o primo Alex sentado ali ao meu lado na mesinha da calçada do bar. Ele parecia enorme, ele parecia brilhante, ele parecia bonito. Sem fazer nenhum esforço pra parecer nada, ele não era exibido. Acho que ele nem sabia direito o jeito que ele era mesmo. Ficava ali sentado do meu lado como se fosse um cara comum, fumando, bebendo cerveja e rindo de vez em quando pra mim. Achei que todo mundo que passava, e nas outras mesas, ficava olhando pra ele e pensando: mas quem será esse moço? De repente me deu assim como uma vaidade daquelas pessoas todas estarem me vendo ali, ao lado dele, e aí aconteceu uma coisa maluca. Por um segundo parei de me sentir monstro.


Olhei para o meu braço na mesa. Meu braço um pouco fino demais, moreno de sol, mas parecia bonito também. Eu olhei a minha mão morena, quase sem pêlos, depois levei ela até o cabelo e pensei que podia deixar ele crescer um pouco, que nem o do primo Alex. E quando levei a mão desse jeito na cabeça, percebi que as minhas costas estavam muito curvadas para frente, como se eu quisesse sempre esconder do mundo alguma funda escondida no meu peito. Então forcei os ombros para trás, e não estava me sentindo nem um pouco monstro quando olhei de novo para o primo Alex e vi a lua cheia subindo por trás da cabeça dele e do telhado da taberna do Willy. O garçom chamou ele de senhor quando perguntou se queria outra cerveja. Ele tinha um jeito de quem sabe sentar num bar, aquele jeito que eu ia ter um dia. Ele perguntou se eu também queria, eu disse que sim, apesar de estar meio borracho. Ele encheu o meu copo até transbordar. Enquanto eu passavo o dedo na espuma, ele falou assim:

- A tia me contou que anda preocupada contigo. - Eu pensei: que saco, ela já andou enchendo os ouvidos dele. Agora vai ficar dando opinião, conselho e tudo. Mas ele não deixou eu dizer nada. Só falou: - Ela diz que acha que tu anda muito sozinho. Que tu não tem nenhum amigo.

Foi o que bastou. Quando ele falou isso - como num shazam! ao contrário, que ao invés do cara virar super, ficava ainda mais coió - eu comecei a me sentir monstro de novo. Coitado, coitado, coitado de mim, pensei. O meu olho ficou cheio de lágrima de pura pena de mim mesmo, todo troncho. Estava meio enjoado daquela cervajada toda, tive vontade de me levantar e dizer que ia embora já pra casa. Aí o primo Alex disse: - Eu sou teu amigo.

Parei outra vez de me sentir monstro. Nunca ninguém tinha me dito isso antes. Foi aí que as coisas começaram a acontecer muito depressa. Me deu vontade de rir, comecei a falar sem parar, ele começou a falar sem parar também no curso dele de medicina, nas coisas todas que ia estudar, umas coisas das cabeças das pessoas, de nome complicado, psico não sei o que, nuns livros duns caras de nomes complicados também, duns discos, duns filmes e disse que ia me dar umas coisas pra mim ler, pra mim ouvir, pra mim gostar. E eu fiquei pensando que não ia dar, porque eu ficava o ano todo lá naquele cafundó do Passo da Guanxuma e ele em Porto Alegre, e perigava então, até a gente não se ver nunca mais, e comecei a ficar triste. Aí ele contou, que a mãe tinha falado, que andava pensando em me mandar estudar em Porto Alegre. E primeiro me deu um baita cagaço, depois foi me vindo uma coragem boa e uma alegria no coração, ia ser que nem filme andar de bonde do centro até o tal Partenon, onde ele falou que morava, e eu ia lá todo domingo de tardezinha, ficava no quarto dele ouvindo na eletrola todos aqueles discos que ele falou que ia me mostrar. Eu com a minha calça Lee igualzinha a dele, no começo desbotada de água sanitária mesmo, depois do tempo, do sol, da chuva, e todo mundo olhava quando a gente entrava junto no cinema e falavam baixinho de um jeito diferente. Porque eu não era mais monstro, só porque a gente era bonito junto. Só por isso falavam e apontavam, eu e o primo Alex. Caminhando de tardezinha por uma praça ou uma calçada mesmo ali daquele lugar onde eu nunca tinha ido chamado Partenon. E Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra, Zanzibar, Uganda... E eu criei coragem e falei pra ele que queria ser músico, fazer rock que nem o do Elvis, que eu sabia de cor uns pedacinhos dumas músicas em inglês mesmo, e ele cantou rindo It's now or never, só um pedaço. Depois passou a mão no meu cabelo e disse que eu tinha que deixar um topete crescer pra cair na testa quando eu fizesse yeah remexendo as cadeiras, e só de sarro eu fiz yeah yeah yeah, e ele morreu de rir e eu morri de rir também. E ele pediu outra cerveja e eu acendi um cigarro e tossi, tossi e ele bateu nas minhas costas. As pessoas em volta olhavam, e ele começou a contar que depois de formado ia viajar de navio pelo mundo inteiro, e eu perguntei se Zanzibar também e ele morreu de rir de novo e disse que sim. Se eu queria ir junto com ele pra Zanzibar, lógico, eu disse, e fiquei imaginando tudo enquanto ele contava que ia ser um grande médico desses modernos que curam a cabeça dos outros pra deixar todo mundo feliz o tempo todo pra sempre sem nenhuma culpa, ele disse. Ele era tão bonito. Todo mundo em volta olhava, eu ria, ele ria, e a gente estava ficando cada vez mais bêbado, quando eu tentei levantar pra ir ao banheiro e quase caí em cima da mesa. Então ele me segurou peo braço, e rindo sem parar falou que tava na hora de ir embora, se não o pai e mãe iam ficar umas feras.

A gente só parou de rir no caminho da porta de casa até o quarto, pro pai e a mãe não acordarem. Passado de meia-noite, Alex viu no pulso. Ele acendeu a luz, se jogou na cama e continuou rindo. Eu fechei a porta, me joguei na cama e continuei rindo. Vezenquando a gente olhava um pro outro e ria mais ainda. Um tempão assim, feito dois mangolões. A barriga doía de tanto rir, eu falei que ia no banheiro mijar e já voltava. Demorei um pouco, parecia que tinha bebido um açude inteiro. Quando voltei, ele tinha tirado toda a roupa e estava deitado de costas na cama. Tu vai te gripar, pensei em dizer. Só pensei, em seguida vi que não tinha vento nem nada. E fui andando pra minha cama enquanto olhava pra calça Lee, a camisa banlon, o mocassim e a cueca dele, jogados no chão, sem saber direito o que fazer com a janela aberta, a lua cheia e o primo Alex completamente pelado na cama ao lado. Tentei não olhar pra ele, mas ele olhava bem pra mim quando falou estranho, como se o que quisesse dizer não fosse o que estava dizendo:
- Tá muito quente, tu não acha?
- É - Eu disse. E aí não consegui parar de olhar pra ele. Fui ficando meio descarado, e comecei a olhar mesmo, porque tinha vontade e era bom de olhar. Desci os olhos pelo peito dele, acompanhando aqueles pêlos que se amontoavam lá em cima, pouco embaixo do pescoço, em volta das mamiquinhas cor-de-rosa. Depois se estreitavam enquanto desciam pela barriga e ficavam assim um fiozinho crespo, até começarem a encrespar mais e a aumentar de novo no meio das pernas. Ele estava com as mãos no meio das pernas, lá onde os pêlos encrespavam mais.
- Eu te espiei dormindo hoje de tarde - contei.
- Eu vi - ele disse. - Eu não estava dormindo, eu estava batendo punheta.
Me deu um vermelhão. Desviei os olhos para o livro de Tarzan, o Invencível, na cabeceira. Em cima duma árvore, Tarzan apontava uma flecha para um bwana, falando com dois negros pigmeus na frente de uma barraca. E se ele disparar a flecha? pensei.
- Tu já esporrou? - ele perguntou.
- Não - eu disse - Nunca, nem sei como é que se faz.
-Quer que eu te ensine? - Estava rindo outra vez. Aquela cabeça de leão de ouro, dentes muito brancos.
- Quero - eu disse.

Ele tirou a mão do meio das pernas, bateu na cama ao lado dele e chamou:
- Senta aqui, eu te mostro como é. Tira a roupa e senta do meu lado.
Tirei, joguei no chão, em cima da roupa dele. Depois sentei na cama dele, só de cueca. Uma cueca feia, toda esbragalada, não era que nem a dele. Ele suava um pouco, o cheiro de suor misturava com o de um perfume que acho que era colônia de barba, mais o do jasmineiro entrando pela janela aberta. Eu podia ouvir o tum-tum do meu coração no peito. Ele estava bem perto de mim. Eu cruzei as pernas, de costas para ele, de frente para a janela.
- Vira pra cá - ele pediu.
Estendeu a mão, tocou no meu joelho. Fui virando, até ficar de frente pra ele. Ele sentou na cama, ficou de frente pra mim, cruzou as pernas também. Ele encostou uma das mãos na minha coxa, depois foi subindo e puxou devagarinho a minha cueca. Estendi a perna para que ele pudesse tirar e jogar no chão, em cima das roupas dele e das minhas. Agora eu também estava completamente nu. De pau tão duro quanto o dele, eu tinha visto. Ele não escondia, não era feio. Quase fiquei com vergonha, mas ele segurava os olhos dele bem dentro dos meus, sem sorrir, nem piscar. Ele levou a mão direita até o seu pau duro, enquanto com a mão esquerda pegava a minha mão direita e levava até o meu pau duro. Ele segurou meu braço, mexendo devagar para que eu movimentasse para cima e para baixo, que nem ele fazia. Ele era tão bonito. Ele se torceu e gemeu um pouco. Fechei os olhos: se sair reto daqui sempre em frente vou dar na África, pensei idiota. Aquela coisa querendo explodir vinha subindo de novo. Eu abri mais as pernas, joguei o corpo para a frente, ele chegou mais perto. Então pegou outra vez no meu braço, cuspiu na palma da mão e levou até o pau dele. Ele cuspiu na palma da mão dele e levou até o meu pau. Quente, molhado, rijo, macio. A cama rangia, eu cheguei ainda mais perto. Aquela coisa crescia dentro de mim feito louca de atar, como se o meu corpo fosse arrebentar e de dentro dele saísse balões, bandeirinhas coloridas de Santo Antonio, penduricalhos dourados de árvore de natal, confete e serpentina de carnaval, sei lá que mais. Mais depressa, ele disse. Mais depressa, vem junto. Parecia que a gente tava sozinhos só os dois num barco solto no mar no meio duma tempestade. Sumatra, Tantor Bukula, Nikima. Eu ia gritar alto quando aquela coisa começou a se juntar dentro de mim, feito uma onda que vai se armando lenge da praia, enquanto a gente espera que ela venha ali na beira, sem me importar nem um pouco que o pai e a mãe ouvissem, e a vizinhança toda e a cidade inteira acordassem. Ele chegou ainda mais perto, eu colei meu peito no peito dele. Ele afundou a boca na minha enquanto eu sentia a palma da minha mão aos poucos ficar molhada daquele fio de prata brilhante, que saía de dentro dele e sabia que de dentro de mim saía també um fio de prata molhado, brilhante, igual ao que saía de dentro dele.

-Vem comigo - ele chamou e eu fui.
Ele passou as mãos molhadas nas minha costas. Eu passei as mãos molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois deitou a cabeça no meu ombro. Meu coração batia, batia, ele podia ouvir. O suor da gente se misturava. O coração dele batia, batia, escutei quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha me ensinado a tirar de dentro de mim. Eu também não me importava de ficar melado da água dele. Nojo nenhum eu sentia. Ele passou a língua na curva do meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pêlos crespos na cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de repente a gente se afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir feito loucos outra vez.

Bem cedo, na manhã seguinte, fomos à praia juntos. Ele me ensinou a mergulhar e a boiar, eu apontei o horizonte e mostrei o caminho da África, das Índias. Depois do almoço, no forno quente do quarto coberto de zinco, ele me ensinou outros caminhos. Na hora de ir embora, de tardezinha, ajudei ele a arrumar suas roupas. Mas não fui até à rodoviária. Espiei da esquina, escondido. Depois corri pela calçada atrás do ônibus, até que ele saísse na janela e gritasse alguma coisa que não entendi direito. Parecia Zanzibar, Partenon, qualquer coisa assim. Ele ficou abanando até o ônibus fazer a curva, na polvadeira vermelha da estrada de Osório.

À noite, fiquei procurando umas músicas no rádio. Nem Gardel nem Elvis, encontrei Maysa, que o pai disse que eu não tinha idade para ouvir. Depravada, falou, e eu não sabia o que isso queria dizer. Na hora de dormir a mãe olhou bem pra mim e disse baixinho:
- Parece que tu está sentindo muita falta do Alex.
Eu falei que não, e não estava mentindo. Eu sabia que ele tinha ficado para sempre comigo. Ela foi dormir, apaguei o rádio. Sozinho na sala, em silêncio, eu não era mais monstro. Fiquei olhando minha mão magra, morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão.


FIM

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossaaaaaa......vc não faz idéia do tesão que foi crescendo a medida que a leitura foi se seguindo.....(suspiro)...é uma história arrebatadora,mistura com luxúria e paixão.
Paixão da descoberta de si mesmo...adorei!