quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

PEQUENO MONSTRO - PARTE 2

A segunda parte da crônica de Caio Fernando Abreu. Quem não leu o início pode acompanhar na postagem anterior


Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo caminho. Daí me atrasei tanto,que quando cheguei em casa, estava armado um começo de alvoroço. O pai já estava de chinelo e pijama, mechamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia ficar no quarto trancado e não ia ir em hora nenhuma nunca mais, e a mãe falou baixo, mas eu escutei: é a idade, não liga, não implica com o guri, criatura. E me deu uma janta meio fria com milho duro e eu cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem precisava dizer nada, sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem mau, cheiro de gente estranha recém chegada de viagem. Polvadeira, bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O pai foi dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A mãe ficou mexendo no rádio, mas só dava descarga no meio de umas rádios castelhanas êle-êrre-uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia dormir também, a mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex, coitado, que o pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos, rezando pra ela não repetir que ele era um bom rapaz, tão esforçado o pobre, se não meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que Gardel cantava: sabia que nel mundo no cabía cada la humilde alegría de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do pai, do primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de tudo.

Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze, vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir: pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre me dava. Mas não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo, embaixo da pia, feito cusco escorraçado, e dormir até a manhã seguinte, para que todos vissem como eu era desgraçado. Meu quarto agora não era mais só meu,não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa até altas. A droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem educado com ele, coitado.

Aquele quarto que agora não era mais meu, mas meu e do tal do primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de puxado, ao lado de um banheiro, que antes dele chegar também era só meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente - tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha de cabeceira, e aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.

Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sntei, levei a mão até a mesinha de cabeceira e apalpei, não tinha nem óculos em cima dela, só meu livro Tarzan, O Invencível, da coleção Terramarear. Pelo menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta, me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu comecei olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro lado do quarto.

A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez mais, e eu, podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, se não os pés batiam lá na guarda no fim da cama-patente.Ele tinha muitos pêlos no corpo, luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas do pêlos. Ele tinha cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos, não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido, ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de que, lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.

Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um tempo comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo. Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei porque, mas de repente todo o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo, ou quem sabe aquele ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não sabia o que era.


CONTINUA...

2 comentários:

Anônimo disse...

E não é sempre assim?!
Parece que por castigo acabamos sendo pegos por aquilo que um dia pensamos repulsar...odiar.
E no final era tudo ....menos odio.
E uma especie de escudo que usamos para uma proteção invisivel.
Estou adorando essa cronica....estou ansiosa pela 3.
enorme sorriso pra ti meu querido amigo :))

Unknown disse...

Parabéns pelo blog!!!