segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

PEQUENO MONSTRO - PARTE 1


Uma crônica de Caio Fernando Abreu escrita em 1975 dividida em cinco partes:



Naquele verão, quando a mãe avisou que o primo Alex vinha passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não gostei nenhum pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mas, por minha causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder de todos. Só de tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas domésticas - as dosas, o pai dizia - estavam voltando da praia. Então caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez em quando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro, ninguém te quer. Não suporatava ninguém por perto. Uma mãe insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo mundo normal vai e um pai que te olha como se tu fosse a criatura mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não bastasse a minha desgraça, agora ia ter de dividir meu quarto com o tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato grasnado, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de avestruz, meus pêlos todos errados.



Fiz cara feia, a mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz, tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo, aqueles bons rapazes tão esforçados e de óculos, sempre saindo com sacolas de lona na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba. Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter certeza que é um coió.



Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a mãe avisou que primo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não conseguia. Na verdae, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas, falavama coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horror deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas barrigonas, aqueles peitos suados, os pés cheios de calos. Eu nunca ia ser igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era assim mesmo que iria me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno monstro, cada vez mais monstro, até ele não aguentar mais um minuto e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com todo o meu ódio, pra ele se entir mal e ir embora no mesmo dia.



No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a mãe não falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu empilhar os gibis, guardar no guarda-roupa a roupa da guarda da cadeira -, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho de Cidreira, onde tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem fim. Vez em quando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra onde vai? bem besta mesmo, não pensava o lugra, só perguntava assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem Jesus fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na Africa, na Índia sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira, coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar pra merda daquela casa com aquele pai e aquela mãe. Ainda por cima, fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto.



Passaram uns bagaceiras com um violão e uma garrafa de cinzano, abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem comigo. Vez em quando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando: a noite tá escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda, amarela, bem ali em cima e da cabeça da gente. Quando eu já tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham sumido, olhando por cima do olho direito pensei, quem sabe agora, saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei a parar pra ouvir o tchuááááááááááááá da estrela caindo dentro do mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha de taquara rachada da dona Irineide, professora de geografia: bó-li-dos, isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-li-dos. Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.





CONTINUA...








Um selo carinhoso para o blog De volta ao meu eu... da querida Nina

5 comentários:

Cangaceiro Surfista disse...

muito bom seus textos, só achei um pouco extenso, ficaria melhor se vc fracciona-los mais entende?!

mas eh isso ae!!
sucesso!!

se puder passa no meu

Unknown disse...

adoro texto assim!!! Boa escolha de texto... Abraços
www.borarir.com

Tolerância Zero disse...

muito extenso... só da pra quem tem tempo.. mas li o principal..muito foda mermo, o autor mandou muito bem.. e parabens pelos elo..

Igor Pinheiro disse...

Gente, não tá extenso e ainda tem mais duas partes.
Enfim, eu gostei, parabéns pelo blog, dei uma lida mais ou menos nos outros posts também.
LEGAL!

Anônimo disse...

Esdras...
Sabe o que me chateia mesmo!?
Quando leio teus textos maravilhosos e ao deixar meu comentário! Pois leio alguns já postos por amigos teus.Então fico aborrecida quando algum deles escreve por exemplo que os acha *MUITO EXTENSO*.
Como assim EXTENSO?!
Me desculpe...não concordo com eles!
Eu acho fascinante quando passo na tua pagina e encontro lá um bom conteúdo para leitura.
Estarei esperando pelos próximas 2 partes restantes(E QUE SEJAM BEM EXTENSAS)
Enorme sorriso...amei o selo!:))