terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O VOO DA ÁGUIA




Naquela manhã, Nina acordou no horário de sempre. Às 09:30 em ponto, abriu os olhos, e sabia que seu dia seria a mesma repetição de todos os dias anteriores dos últimos dois anos. Mas naquele dia, Nina estava especialmente esgotada, não queria levantar, escovar os dentes, tomar uma xícara de café preto, vestir a roupa, sair de casa, pegar o ônibus, chegar até o restaurante em que trabalhava, trocar a roupa pelo uniforme e servir das 11:00 até à meia-noite os mesmos clientes chatos e exigentes de sempre. Era sexta-feira e ela queria fazer algo diferente, já tinha perdido as contas de quanto tempo não tirava folga numa sexta-feira, nem num sábado, nem num domingo, ao contrário da maioria, para Nina fim de semana era sinônimo de trabalho dobrado. Apenas uma folga no meio da semana e um domingo de dois em dois meses, esse era o trato que havia feito com os patrões assim que chegou do interior desesperada por um emprego, a fim de concretizar todos os seus sonhos na cidade grande. Aceitou sem pestanejar a proposta, pois estava certa de que conseguiria com o tempo ganhar a simpatia e compreensão dos patrões e conciliar o trabalho com um cursinho pré-vestibular ou um curso de idiomas, estando dentro de alguns meses apta a conseguir um emprego menos sacrificante. Mas não foi o que aconteceu, quanto mais o tempo passava Nina se afundava no trabalho e mal conseguia tempo para respirar, era de casa pro trabalho, do trabalho pra casa e nada mais.


Encontro com amigos, sessões de cinema, teatro, baladas, viagens em finais de semana e feriados, nada disso fazia mais parte da vida de Nina. Encontrava até dificuldade para visitar a mãe viúva e sozinha, que tinha ficado na pequena cidade onde se criou. O dinheiro também era pouco, mal dava para pagar o aluguel do minúsculo quarto e sala em que morava, mandar algum pra mãe e guardar o restante para pagar os estudos assim que conseguisse encontrar tempo. Às vezes pensava em chutar o pau da barraca e pedir demissão do emprego, respirar um pouco, passear, usufruir todos os prazeres que uma grande metrópole pode oferecer e que ela desejava tanto, afinal não tinha mais vida própria, sentia-se uma escrava, enclausurada entre as quatro paredes daquele bendito restaurante. Mas quando vinha a vontade de jogar tudo pro alto, pensava na dificuldade de se conseguir um emprego e repetia para si mesma que precisava ser mais paciente e que as coisas iriam melhorar. Era bonita, inteligente, razoavelmente culta, tinha capacidade de conseguir algo melhor, ainda que sem um diploma nas mãos. Iria ser paciente e sair de seu emprego só depois de conquistar uma oportunidade melhor, não jogaria fora tanto trabalho duro para ficar de mãos abanando. Sim, seria paciente, suportaria por mais um tempo, aquele trabalho que sugava todas as suas energias.

Seis meses, um ano, um ano e meio, dois anos se passaram e nada melhorou. Nina levantou-se e ficou sentada na beira da cama, ligou o rádio, coisa que sempre fazia, pois adorava acordar com música. Respirou fundo, a ideia de enfrentar mais um dia como garçonete no restaurante parecia sufocar-lhe. Pensou que não suportaria, que já havia chegado em seu limite. Sentiu vontade de chorar, não queria ficar desempregada e ser obrigada a voltar pra sua cidade com o "rabo entre as pernas", como uma fracassada, que saiu da casa da mãe prometendo ganhar o mundo, conquistar sua independência e "deu com os burros n'água". Era assim que aquela gente fofoqueira ia falar, pois o passatempo preferido deles era falar da vida alheia. Não queria mais voltar, viver aquela vidinha medíocre de cidade provinciana novamente, não tolerava mais cidade pequena. Estava num impasse, o que era mais intolerável, continuar em seu abusivo emprego que exauria todas as sua forças para batalhar por algo melhor ou retornar como um fracasso total a casa de sua solitária mãe, que com certeza receberia-a de braços abertos, mas tendo que aguentar a maldade alheia dos moradores de sua minúscula cidade fazendo comentários e especulações nada agradáveis a seu respeito? Nina deu de ombros, de repente todo seu corpo amoleceu, pensar em todas aquelas possibilidades havia deixado-a tensa. Mesmo sentindo-se violentada, decidiu aprontar-se para mais um dia de trabalho.

Com a xícara de café na mão e já pronta para o trabalho, Nina aumentou o volume do rádio para escutar a mensagem do dia que sempre ouvia antes de sair. Eram sempre mensagens de ânimo, conforto, que falavam de amor, paz, esperança e faziam seu dia ficar mais leve, muitas vezes lhe dando uma injeção de ânimo pra segurar alguma barra. E justamente naquele dia ela precisava de algo especial, estava torcendo pra que as palavras do locutor lhe enchessem de força pra continuar, pra suportar quanto mais fosse necessário.

O locutor com sua voz firme e suave começou a falar sobre a águia. Neste conto uma águia pode viver até 75 anos, no entanto quando chega aos 40 ela já está velha demais para continuar voando, caçando e experimentando a liberdade como antes. Seu bico alongado e pontiagudo se curva apontando contra o peito, dificultando assim que se alimente, suas garras também já bastante frágeis impede que ela agarre sua comida e as penas já muito velhas e gastas não suportam mais grandes voos. Diante de tal quadro a águia tem apenas duas opções: a primeira é entrar num processo de auto-mutilação durante 150 dias, onde vai arrancar com o bico suas unhas e as penas e arrancar seu bico nas pedras, para que nasçam novos bico, unhas e penas e ela possa viver mais 35 anos como uma jovem ave. Como todo esse processo é muito doloroso e cansativo a segunda opção é ficar parada num canto qualquer até a morte, já que viver completamente debilitada, sem poder voar e se alimentar é impossível. A águia desta historinha escolhe a primeira opção, afasta-se para um lugar ermo e distante, começando assim seu processo de auto-mutilação, sofre com as dores, sangra, grita, mas depois de 150 dias está novamente bela e elegante, pronta para seu voo de renovação.

Ao término da mensagem Nina chorou copiosamente, mas não era um choro de tristeza, era um choro limpo, puro, um choro de renovação, porque naquele momento ela tinha decidido, assim como a águia do conto não ia ficar parada, impotente, esperando todas as suas energias serem sugadas até que não lhe restasse mais nem um sopro. Sabia que pagaria um preço alto por sua decisão, mas estava disposta a pagar. Nina queria continuar vivendo e voando.

10 comentários:

Yaser Yusuf disse...

ADOREI O TEXTO, ALÉM DO QUE ELE PASSA UMA MENSAGEM VALIOSA , DE COMO DEVEMOS SER FORTES AOS DESAFIOS QUE NOS SÃO PROVADOS, O QUANDO PODEMOS FAZER E SER CAPAZES!
SEGUINDO SEU BLOG!

http://yaseryusuf.blogspot.com/

Anônimo disse...

Esdras...querido,misturou um nome e uma história...e acabou por criar algo doloroso,revelador,profundo!
Teu conto ....um pedaço de vc....mexeu com meus sentidos.
Te vi em varios trechos....em outros me vi.
Vi tua luta pra vençer...e minha busca por liberdade!
Vi teu medo em desistir....e minha angustia de fugir.
Vi você...e também me vi!
Continue,insista,lute...jamais desista! Tenha perseverança:FIQUE!
Será doloso?Sim!
Mas essa dor não durará eternamente!
Essa tua paixão na escrita diz pra mim que vc é um guerreiro.

enorme
e agradeçido sorriso pra ti :))

Blog do Camelo disse...

Muito bom o testo gostei muito ... é uma mensagem e tanto ... tomei a liberdade de mostrar para alguns alunos meus ... bom o seu blog, meus parabéns ^^

Silvio disse...

Que texto belíssimo! Favoritei o post, pois não consegui ler completamente.

Parabéns pela postagem, forte abraço.

Nick disse...

Gostei muito, é intenso, como se desse pra sentir o sentimento da personagem.
E, é a realidade que acaba acontecendo com muitas pessoas hoje, e que ao contrário da personagem geralmente não se libertam, e as vezes voltam pra sua terra derrotados.

TATA CRISTINA disse...

Uau!! Que história linda! Meio triste, mas linda!!
Vc escreve muito bem!
Parabéns!

Aquela disse...

É uma pena que nos contetemos com tão pouco. Cada um de nós deveria ter uma águia dentro de si.

Gillianne Vicente disse...

Esdras,
Adorei o blog, sensivel demais!
Espero que tenha gostado do " Fabuloso Destino de Amelie Poulin".
Muito obrigada pelos elogios...
Voltarei para acompanhar seus escritos.
Abraço.

Jeh Pagliai disse...

Adorei os textos, o blog... Super emotivo, muito bonito msm, parabens :D


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www.jehjeh.com

MARINA disse...

Adorei o blog!!
texto muito lindo!!
parabéns!!